PROJETO JARAQUI, UMA TRIBUNA PÚBLICA PARA O CIDADÃO AIRÃOENSE

Eu defino o termo cultura a tudo que é produzido a partir da inteligência humana. Ela se faz presente desde os povos primitivos em seus costumes, leis, religião, suas artes, ciências, crenças, mitos, valores morais e em tudo aquilo que compromete o sentir, o pensar e o agir das pessoas.
Em toda minha vida sempre me abeberei da cultura e vivi a cultura. Quando criança, aprendi a gostar da música de palco, quando assistia ao meu tio, o grande violonista conhecido por Rochinha nas suas apresentações. Na adolescência (12 anos), comecei a viver o teatro até os meus 29 anos. Em 1971, parti para as letras, como repórter, em seguida como jornalista-articulista de política, depois, escritor e professor-pesquisador. Até os dias de hoje vivo a cultura, amo a cultura e adoro as letras.
Apesar das evoluções pelas quais passaram e passam as civilizações, a cultura tem a capacidade de permanecer quase intacta. É passada aos descendentes como uma memória coletiva, lembrando que a cultura é um elemento social, impossível de se desenvolver individualmente.
Vou fazer um resumo de minha vivência nesse mundo maravilhoso chamado cultura, um vírus que está no meu sangue e que não posso viver sem ela. Citarei alguns pontos culturais tradicionais de Manaus que freqüentei, e Novo Airão poderá ter o seu com o Projeto Jaraqui-Novo Airão. Esses pontos, bem administrados, podem levar o nome de uma localidade além das fronteiras de uma comunidade.
Temos o Bar do Caldeira, conhecido como Universidade Livre do Caldeira, localizado na esquina das ruas José Clemente com Lobo D´Almada. Tem esse nome em decorrência da explosão de uma caldeira da Santa Casa de Misericórdia e uma parte do tanque foi parar bem na porta do bar. É bastante freqüentado por políticos, intelectuais, estudantes, funcionários públicos e artistas. A Universidade Livre do Caldeira preserva a tradição de eleger o seu Reitor e a Diretoria Executiva pelo voto direto. Numa manhã ensolarada de 1974, fui matriculado na Universidade pelo nosso saudoso senador Fábio Lucena, à época colega de redação do Jornal A Notícia e vereador pelo MDB, um dos políticos mais temidos pelo Regime Militar.
Outro local tradicional é o Bar do Armando, famoso pelas ofertas de saborosos sanduíches de pernil e de bolinhos de bacalhau, além, é claro, da cervejinha servida ‘no ponto’. É freqüentado por desembargadores, juízes, advogados, escritores, jornalistas, engenheiros, políticos, estudantes, músicos, artistas de teatro e pessoas do povo. O bar foi transformado em ponto turístico popular que encanta pelo ambiente nostálgico e de boemia, emoldurado pela beleza encantadora do Teatro Amazonas.
O mais tradicional de todos é, na minha opinião, o Café do Pina, do velho José Pina. Lembro, nos meus tempos de secundarista, quando o café funcionava em frente ao Cine-Teatro Guarany, na época dos bondes. Mudou de local inúmeras vezes, mas ainda continua na Praça da Polícia, onde o Projeto Jaraqui reúne todos os sábados a partir das 10h00. Até os dias de hoje é ponto obrigatório do intelectual ao povão. O nosso senador Jefferson Péres, um dos intelectuais amazonense presente na inauguração do Café do Pina, relatou: “Em 1950 tinha inicio uma nova década e, também, a construção de um barzinho, sem nada de especial, mas que iria marcá-la profundamente. O local era um canteiro triangular, em frente ao Guarany, onde havia um antigo chafariz desativado e dois postes de sustentação da tela na qual se projetavam filmes ao ar livre. Ao se erguerem os tapumes, correu o boato de que seria construído um posto de gasolina. A novidade não agradou os ginasianos, que ensaiaram um movimento de protesto e ameaçaram depredar a construção. Pressionado, o então prefeito Chaves Ribeiro aconselhou o proprietário a acelerar as obras, a fim de criar o fato consumado. Diante disso, foi abandonado o projeto original, de forma circular, por outro mais feio, retangular, que pôde ser construído em tempo recorde. O êxito foi imediato e se deveu a uma conjugação de fatores. Em primeiro lugar, sua localização, nas vizinhanças de dois cinemas, três colégios, um quartel, e mais, da então concorridíssima Praça da Policia; segundo a excelência do seu café, talvez o melhor da cidade; e finalmente, a simpatia do proprietário, o português José de Brito Pina, extrovertido e conversador, que em pouco tempo chamava cada um dos freqüentadores pelo nome. Batizado oficialmente de Pavilhão São Jorge, o barzinho era conhecido popularmente por Café do Pina e, mais tarde, República Livre do Pina”.
Tive a oportunidade de tomar daquele cafezinho saboroso e de ter conhecido o simpaticíssimo José Pina (1912-1982), e nunca mais esqueci o tradicional “Alô Jovem!”. “Cafezinho pro jovem”
E o inesquecível Clube da Madrugada, que reunia seus intelectuais e grandes pensadores aos pés do Mulateiro, nascido bem defronte ao hoje Palacete Provincial. Lembro dos grandes intelectuais, como Farias de Carvalho, Celso Melo, Fernando Colliyer, João Bosco de Araújo, Luiz Baccelar, Teodoro Botinelly, Saul Benchimol, padre Nonato Pinheiro, Jorge Tuffic, e tantos outros que me incentivaram no início de minha caminhada pelo mundo das letras.
O clube surgiu em novembro de 1954. O professor Tenório Telles escreveu lembrando que o ”Clube da Madrugada surgiu como uma reação à estagnação cultural, ao provincianismo, ao conservadorismo dos artistas e intelectuais comprometidos com a velha ordem política e econômica. Os jovens escritores, ligados ao Movimento Madrugada, esbarraram na resistência e incompreensão dos representantes do pensamento conservador local. Conforme depoimento do escritor Márcio Souza, "os artistas foram considerados loucos, inveterados alcoólatras, perigosos contestadores da inércia."
Estamos em 2013, estou com 63, maioria dos meus e dos nossos grandes mestres já partiram, como dizia Farias de Carvalho, “para o eterno do azul”. Percebo que poucos intelectuais freqüentam o lugar; os "gymnasianos" continuam na área; o Café do Pina foi revitalizado aos moldes dos anos 1950; os “sebos” estão alojados em Quiosques estilo neoclássico; a Praça voltou a brilhar como outrora; o Mulateiro continua lindo e imponente, lindo. Só está faltando o Clube da Madrugada.
Novo Airão poderá ter o seu ponto de encontro a partir de hoje, 20 de abril de 2013, para reunir intelectuais, estudantes, profissionais liberais e pessoas do povo e reverberar as discussões que afligem a população e ser freqüentado por turistas e visitantes. Pode ser no Café da dona Elza ou no Coreto da Praça, contanto que tenha um para contar a nossa história.
POR: GARCIA NETO
GARCIA NETO É PROFESSOR, ESCRITOR E JORNALISTA